-Tu sabe como eu faço para ir até o aeroporto?
Ela faz aquele olhar de quem acaba de sentir cheiro de peido. ‘Hum...’. Murmura com a colega do lado, que responde:
- De trem.
Minha vez de fazer aquele olhar de quem acaba de sentir cheiro de peido. Mas elas dão a explicação direitinho e convencem.
Nunca tinha andado de trem. Fui até a estação, ao lado da rodoviária, paguei a passagem (mais barata que o ônibus, acreditem), esperei pouco no terminal, entrei no trem, chego à Estação Aeroporto, não deu 10 minutos a viagem (mais confortável que o ônibus, acreditem). Gostei do trem.
Com horário mais do que folgado, 15h03, caminho pelas passarelas aéreas (que deviam existir por toda cidade) até o ponto de espera pelo microônibus da Infraero, que leva de graça até o Aeroporto quem chega do trem.
Vou direto para a bilheteria do Guion, e descubro que eles só começam a vender os ingressos 15 minutos antes da sessão – uma atitude que considero absurdamente idiota, mas vá lá. Então desço um andar e me dirijo para a revistaria/livraria que há no outro extremo no aeroporto. Lá sempre têm LP&M pockets em bom estado, e com títulos interessantes. Compro O Mercador de Veneza, do Shakespeare, e A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi. Afinal eu ainda tinha mais de uma hora até 16h15.
Passo então para o McDonalds e peço:
- Dois Chikens McJúnior e uma Coca pequena.
- Dois Chiken McJúnior... Coca média?
- Coca pequena.
Ela repassa a encomenda aos outros.
- Só aguardar aqui do lado.
Não sei porque ainda nos falam isso. Espero ali do lado. Chegam um Chiken, uma Coca, um leve empurrão da bandeja em minha direção, e um sorriso dizendo ‘Pronto’.
- São dois Chikens.
- São dois Chikens? – pergunta para a caixa que me atendeu.
- São dois Chikens. – responde a caixa que me atendeu.
Vem mais um. Saio, sento e como.
Ainda com a Coca inacabada – não sou o mesmo consumidor de refrigerantes que era, o gás dificulta a ingestão e a apreciação do líquido agora – preciso ir ao banheiro. Tranquilo. No aeroporto os banheiros são no mínimo não-sujos, e tem aquele mármore onde colocar a bagagem de mão dentro da cabine.
Terminado, vou em direção ao Guion, sento numa das cadeiras do Café Guion, e aproveito os minutos restantes até as 16h para ler um pouco da suposta comédia shakespeariana – vi a mais recente adaptação cinematográfica da peça, O Mercador de Veneza (The Merchant of Venice, 2005), com Al Pacino, e ela não se parece em nada com uma comédia, aliás, é um dos melhores dramas de época que já tive o prazer dever no cinema.
Chega a atendente, paro na ‘fila’ (um sujeito tinha chegado segundos antes de eu me levantar da cadeira), e compro o ingresso sem o menor problema. ‘Sem o menor problema’ porque Anticristo (Antichrist, 2009) é para maiores de 18anos, ainda não tenho 18 anos, e geralmente não tenho cara de quem tem 18 anos. Tudo certo. Também se implicassem eu já estava analisando as possíveis maneiras de barganhar a entrada (uma delas sendo contar que só tenho dezessete anos até durante as próximas 72 horas). Brüno (Brüno), Bastardos Inglórios (Inglorious Basterds) e Gamer (Gamer) são os filmes para ‘maiores’ que, nessa ordem, eu vi no cinema esse ano. Só para o primeiro pediram minha carteira de identidade – e ou o mané não notou que eu não tinha 18, ou deixou passar, e por dois motivos: ‘ele faz 18 esse ano’ ou ‘ele está com alguém de 18 e faz 18 esse ano’. Se não perguntaram minha idade em Bastardos Inglórios, era porque eu estava com mais pessoas, e se não perguntaram em Gamer, era porque eu parecia ‘maior’ (embora a caixa parecesse meio desligada). Agora para Anticristo, eu tinha quase certeza que pediriam minha identidade. Isso porque é o filme mais polêmico do ano. No Brasil o filme não foi muito falado na mídia (saiu uma crítica da Isabela Boscov na Veja, mas eu não li porque foi a Isabela Boscov que escreveu, e porque saiu na Veja.), mas em Cannes a platéia ficou chocada (tá, são franceses), e o público geral teve reações à lá Jogos Mortais 3 (Saw III, 2006) – o mais violento de todos, que fez pessoas desmaiarem na Inglaterra (mas tá, são ingleses...). Então, mesmo sem o mesmo ‘auê’ no Brasil, pensei que não me deixariam em uma sessão (a única) de Anticristo.
Mas deixaram (e ainda bem que deixaram!). Pude finalmente ver um filme do mestre Lars Von Trier no cinema. Dele eu só tinha visto Dogville (Dogville, 2003), quase no cinema, na Sala Redenção da UFRGS, esse ano mesmo (adorei). O renomado diretor sueco tem sua fama por fazer filmes difíceis, densos e fascinantes. Dogville é assim.
Anticristo também.
É complicado achar palavras que descrevam Anticristo. É um filme diferente, porém não mais diferente que um filme comum. Estranho? Falar de Anticristo é tão estranho quanto o próprio filme e a experiência de vê-lo (no cinema). Pode-se interpretar o longa de duas formas: um drama sobre um casal que perdeu um ente querido, e uma ‘mostra’ das repercussões desse ocorrido, por meio de simbolismos; ou um terror psicológico com coisas sobrenaturais. Realmente eu prefiro ver o filme como uma mistura dessas duas opções. Serve tanto como um forte drama, quanto como um eficiente terror. De qualquer forma, é um filme que apresenta uma tese sobre o comportamento humano. E é complicado. Claramente coisas acontecem de forma explícita na história. Por outro, o único modo de entender isso direito, é preciso prestar atenção em coisas que não acontecem. Certos detalhes, referências visuais, palavras chave, gestos sutis. Caso contrário ao final do filme você pensará ‘O quê?’.
Tamanho é o minimalismo com que Von Trier ajeitou esses detalhes ao longo da história que eu não consegui perceber todos eles. Mas eu sei que eles estão lá. Como eu sei? Porque se notei alguns pontos que servem de explicação para algumas das coisas que acontecem aparentemente sem explicação, acho muito difícil que em uma revisão do filme eu não ligue os pontos que faltam. Do meu ponto de vista, entendi 2/3 do filme, e se eu encontrei uma interpretação que cobre 2/3 do que o filme apresenta, acredito que o 1/3 que resta pode ser explicado do mesmo modo. Só preciso ver de novo. E eu adoro precisar ver de novo! Não considero ruim um filme precisar ser visto mais uma vez para ser compreendido. Pelo contrário, acho isso uma qualidade, isso faz do filme uma divertida atividade de lógica, um quebra-cabeça intelectual. Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2002), obra-prima de David Lynch, 2001: Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968), considerado por muitos a melhor ficção científica do cinema, e Clube da Luta (Fight Club, 1999) são três filme que, caso você veja uma vez só, não absorvera tudo que eles têm para oferecer. Então, se quiser ver Anticristo, saiba que provavelmente precisará vê-lo de novo para entender tudo. A não ser, é claro, que você considere os acontecimentos do filme apenas como cenas de terror gratuito – o que eu duvido.
Se por acaso Anticristo não tenha conteúdo nenhum, a produção se encarrega de pelo menos dar uma bela forma a esse ‘nada’. Imagem e som trabalham juntos para nos mostrar as dores, os arrepios e as tristezas que os protagonistas sofrem. E que trabalho incrível! Penso se essa não é a primeira vez que sou testemunha de um uso tão espetacular da edição de som. Preciso dar os parabéns para a equipe de edição sonora, coordenada por Kristian Eidnes Andersen. Uau! Sério, tentem prestar atenção no som. Nunca as pessoas notam a paisagem sonora dos filmes, apenas as ocasiões em que uma melodia musical marcante ou canção é tocada – e se o autor é um conhecido do público então, daí é o filme que perde atenção. Oscar de Edição de Som (ou Mixagem; não sei diferenciar ainda, mas sei que são diferentes). A fotografia de Anthony Dod Mantle é impecável. Fazendo uso de uma paleta de cores cruas que dão uma atmosfera tétrica essencial ao filme (afinal, é um terror), também resultando em vários quadros que, fora do contexto aterrador que ganham no filme, ficariam lindos emoldurados em uma parede (vale dizer que a cena foto do cartaz, aí em cima, já pode ser considerada como antológica, e a mesma coisa para a última imagem do capítulo 5). Aliás, quase todo o filme, com a exceção de certas passagens (fáceis de notar), é bonito de se olhar:
(No entanto, friso na questão de imagem e som trabalharem juntos porque todas as cenas, todas as cenas (!) não chegariam a fazer nem uma vírgula do efeito que causam se a imagem e o som não estivessem harmonizados).
Von Trier escreveu um roteiro onde somente duas pessoas interagem durante o filme todo. Tirando os figurantes que surgem na tela porque menos de um minuto no início, todo elenco se resume a dois nomes: Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe (os dois absolutamente irrepreensíveis!). ‘Ela’ e ‘Ele’, literalmente. Sim, seus personagens não têm nomes. É verdade. E nós mal notamos isso. É o relacionamento de um casal. Os casais se chamam por segunda pessoa do singular ou apelidos afetivos – neste caso nem apelidos, mas enfim. Só que mesmo assim os personagens sempre têm um nome! É obvio que Von Trier poderia ter inventado um nome para cada um, mas o que ele fez foi muito melhor, e mais inteligente. Não chamando seus personagens por nomes, ele faz com que a mensagem do filme seja mais abrangente. Ele quer mostrar que o que acontece com Ele e Ela pode acontecer com qualquer ‘Ele’ e ‘Ela’. Entendem? E é mais profundo ainda.
O que o filme nos mostra – ao menos o que eu acho que o filme mostra – e o que pode ter dado a parecer preconceito por parte de Von Trier, é o papel da mulher na nossa História. Não exatamente o papel da mulher, mas o papel para a mulher. ‘Ela’ estava escrevendo sua tese, uma pesquisa sobre exatamente o que filme trata, que chamou de ‘Gynocide’. ‘Gynocide’ é uma palavra que perde o trocadilho em português, pois é uma palavra que combina duas palavras que combinam em inglês somente: genitais e genocídio. O trabalho d’Ela é metalinguisticamente o próprio filme que estamos vendo. O ‘Genocídio dos Genitais’ recebe seu momento carnal em Anticristo (não darei detalhes). Acredito que uma das facetas da explicação de Anticristo se dá através dessa específica relação entre a destruição do genital da mulher durante torturas na Idade Média por parte da Inquisição, o porquê disso e suas conseqüências na mente da mulher. Esse é apenas um em meio a um monte de crueldades que o Homem causou na Mulher – Von Trier apenas o usa como fio narrativo principal, mas faz menção, no geral, a toda a crueldade injustamente sofrida pela mulher. Quero dizer, para mim essa é a razão do filme. Quem termina de ver pode pensar que é justamente o contrário, agora qualquer um que tenha visto Dogville sabe que a última coisa que Von Trier teria é preconceito pela Mulher. Isso somado à incrível habilidade do diretor em dizer coisas sutilmente, é o suficiente para eu acreditar que o terror psicológico e as cenas de horror físico presentes no filme não são gratuitos e devem ter um significado mais profundo. Há vários eventos aparentemente incompreensíveis ao longo da projeção. Por exemplo, o pássaro que brota do chão, e outros animais em situação no mínimo bizarra. Aliás, os animais, e a Natureza em si têm um papel extremamente importante no filme. Creio ser o elo entre as coisas que acontecem e as que não acontecem.
Como eu avisei, escrever sobre Anticristo é estranho; logo, ler sobre também o é. Provavelmente esse texto vai parecer confuso e/ou mal escrito, mas tentem não jogar toda a culpa em mim. Imagino ter conseguido ao menos martelar na cabeça de vocês que Anticristo é um filme diferente.
Agora já posso dizer por que meu dia foi peculiar. Lá pela metade do filme eu começo a já preparar o que iria escrever sobre o filme. Se fosse só sobre o filme, tudo bem, mas acontece que desde que saí do cinema comecei a narrar os acontecimentos do dia para mim. Tratei o dia como o capítulo de um livro ou como um filme mesmo. Foi muito engraçado.
Quando o filme terminou, 18h02, pensei em ficar no aeroporto e assistir a Che 2 – A Guerrilha (Che: Part Two, 2008), mas acabei indo ao terminal do T11, e logo que este chegou foi o primeiro a entrar. Nunca tinha sido o primeiro a entrar no ônibus. Sentei no fundo, em cima na roda, mais alto, as pessoas não gostam, mais chance de ninguém sentar ao meu lado. Subindo o viaduto na frente do aeroporto, constato que levarei muito, muito tempo para voltar para casa. Olho pela janela, 18h08, um engarrafamento quilométrico. Porém não me incomodo. Naquele instante eu estava me sentindo muito feliz. Independente (quase), adulto (quase), pensei ‘Não preciso de um carro’. E vendo aquela fila de carros absurda, imaginei se não seria melhor ter pegado o trem de novo, e então mais um ônibus. Ou ter ficado para ver Che 2.
O fato é que realmente o T11 demorou, e muito, para chegar ao outro terminal, onde eu desci. Um CD e meio do Iron Maiden. Isso mesmo. Vocês têm noção de quanto tempo é isso? Desço do ônibus só às 19h22. O telefone não funcionou, então não consigo avisar a minha mão que cheguei (ela queria que eu ligasse para que ela fosse me pegar). Espero uns minutos, e sigo caminhando. Vendo de relance a cor do céu, ao invés de ir direto para casa, vou em direção a uma praça que possui uma vista fantástica do pôr-do-sol. Fico ali até terminar a última música do segundo CD do Iron que eu estava ouvindo. Não percebo a incrível rapidez com que o tempo passou desde eu chegar ao fim da linha do T11 até aquele momento. Já são 19h42! Mas valeu a pena. Ver o um pôr-do-sol tão fabuloso não estava nos meus planos.
Ainda quebrando o planejamento inicial de ir direto para casa, faço o caminho que ninguém mais conhece por aqui. A trilha do mato. Já estava quase escuro, havia um diálogo interno na minha cabeça:
- Eu não deveria.
- Mas eu vou.
Quando vi, já tinha entrado. Quando Alexander The Great tinha acabado lá em cima da praça, botei a trilha sonora de Coraline (Coraline, 2009) nos ouvidos. Não sei se foi coincidência, mas entrar em um caminho no meio da floresta, abandonado na prática, quase de noite, ouvindo as melodias que Bruno Coulais compôs para um filme de terror infantil (não só uma aventura fantástica, Coraline é um raro terror infantil, perfeito)... Essa situação era perfeita para refletir sobre Anticristo: um filme de terror que se passa no meio de uma floresta (não por acaso chamada de Éden). Eu estava tenso, muito, muito tenso. Mas não por causa do medo do sobrenatural, em parte presente em Anticristo, e sim em função dos humanos que eu poderia encontrar ali. Talvez meu inconsciente tenha trabalhado de forma a me fazer experimentar algo parecido com o que acontece no filme para que dessa forma eu pudesse entendê-lo melhor. Não sei. Mas não aconteceu nada. Foi apenas gratificantemente tenso.
Chego em casa às 20h, tomo banho, e já começo a escrever esse texto. Aí se dá a explicação do título desse post: O Caos Reina no Anticristo em mim. ‘Que coisa feia!’, ‘Ai que cara depressivo’, podem pensar alguns ao primeiro ler o título sem prestar atenção no que ele significa. Bom, todo mundo que já falou comigo sabe que eu sou um sujeito cético e ateu. Logo, Anticristo em mim, serve tanto para representar essa minha faceta, como também uma indireta de que eu escreveria sobre o filme Anticristo. E O Caos Reina, primeiro porque é uma fala presente em Anticristo, depois porque contatei isso fortemente durante dia (e noite). Eu não tinha planejado ver o pôr-do-sol, nem entrar na trilha do mato, nem narrar o dia para mim mesmo, nem comprar os livros com comprei no aeroporto, nem várias coisas. Um exemplo forte, eu tinha planejado terminar esse texto no mesmo dia em que o vivi. Estava super empolgado em contar tudo nos mínimos detalhes. Mas não deu. Fiquei com sono, e fui dormir (conseqüência de ter ficado mais do que o normal de horas acordado no dia anterior). E agora termino de escrever no dia seguinte, sem encontrar as mesmas palavras e combinações de palavras que eu estava pensando ontem. Então O Caos Reina no Anticristo em mim é, na real, um título bonito. Considero qualquer coisa anti-religião como boa. E caos não é uma coisa ruim. Não fosse pelo caos nunca teríamos surpresas durante nossa vida, e pelo menos eu adoro surpresas.