quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Vou Enganar Alguém - Contos #4

Vou enganar alguém. Já sei quem. Não sei como.

Eu estava me perguntando, já pela enésima vez, como enganar alguém para um fim específico. Acabei de escrever um e-mail onde faço exatamente o contrário. Falei puramente a verdade, e é o que fez o texto ficar bom. Mas isso porque era algo que exigia sentimentos verdadeiros. O que eu quero fazer agora, não.

O que farei? Ainda estou decidindo, mas com certeza enganarei alguém. Você não deve achar eu consiga fazer isso por me conhecer bem, ou não me conhece de verdade, e não sabe do que sou capaz. Quem eu escolhi para ser enganado já se encontrou a primeira alternativa, porém agora está na segunda.

Ele tem uma irmã, mais velha, mas não velha. Ela namora um conhecido de um amigo meu. E considerando isso, acabo de descobrir o como é que vou enganar alguém.

*

Chamo ele para conversar. Estamos em um bar. Ele não faz idéia do que pretendo fazer. Não sabe o que o aguarda. Lanço a isca. Pergunto como vai a irmã. Mas pergunto de modo a mostrar que pareço estar levemente interessado nela. Não o interessado ‘por amor’. Apenas o ‘interessado’. Ele acha que eu não tenho chance nenhuma com ela. Não, ele não acha. Ele tem ‘certeza’ que eu jamais ficaria com ela. Conduzo a conversa até o ponto em que ele finalmente diz o que eu estava esperando:

- Ah, duvido que tu consiga!

- É mesmo? Tu acha que não consigo? – retruco, provocando e, olhando para o lado, chamo o garçom – A conta, por favor. – Então pego a carteira, com pontas das notas altas aparecendo pela abertura de propósito. E ele olha.

- Não consegue. Duvido... Aposto que não consegue!

Como é? Eu escutei uma voz exclamando ‘bingo’ na minha cabeça? Ele mordeu a isca. Caiu na armadilha.

- Tu? Tu aposta? Eu que tenho dinheiro, e tu que aposta?

- Mas vai... É isso mesmo! Aposto, sim! Sei que vou ganhar.

- Hum...

- E então? Tá dentro?

- Tu tá falando sério? – só aumentando a tentação dele.

- Sim! Vamos lá!

- Tá, tá bem então! Quanto?

Ele olha para a minha carteira, de leve. Calcula. Ali deve ter o quê? Uns R$200,00?

- R$500,00!

- O quê? R$500,00? – finjo surpresa.

- É. Isso mesmo!

- Tem certeza? Não quer abaixar o valor?

- Não. É isso aí ou nada. – ele estende a mão.

- Fechado. – fechamos o acordo.

Agora é só executar a ação.

*

- Rafael, qual é o número daquele cara que tá namorando a Jéssica?

- Porque tu que saber o telefone do namorado da Jéssica? – quase incrédulo.

- Porque eu preciso falar com ele. Sobre ela.

- O que tu tem em mente? – e se vira para buscar caneta e papel. – Não responde... – estica a mão, entrega o número.

- Melhor, faz o seguinte. Chama ele, e com ‘ele’ eu digo ‘os dois’, chama os dois para a festa da Gabriela amanhã.

- Como assim?

- Como assim o quê? Isso mesmo que tu ouviu.

- Primeiro: a festa não é minha para eu convidar qualquer um. Segundo: a festa é da Gabriela, e ela mal conhece o Carlos e a Vitória.

- Vocês dormem juntos, por deus! São um casal. Tu pode convidar duas pessoas se tu quiser.

- Mas eu não quero que ela se sinta mal na presença deles.

- Não ouvi isso. Meu, a Gabriela convida quem ela viu na esquina... ela convida até quem ela não viu!

Ele me olha como se dizendo ‘Tu acha mesmo?’.

- O que tu quis dizer com isso? – desconfiado.

- Que ela é mais amiga de qualquer um que tu escolha convidar para a festa dela do que as pessoas que ela mesma convidar.

- Não sei se gosto do teu tom. – fala isso já o tom de voz dele mesmo meio debochado, e abrindo um quase sorriso. Ele concordava comigo. Retribuo no mesmo gesto.

- Tu já vai convidar o Vicente, não?

- É... Vou.

- Então já chama a irmã com o namorado também! É simples. Tu pode dar essa desculpa para a Gabriela, se ela se incomodar, o que eu duvido que aconteça.

- Tá bem. Mas depois tu me conta o que tu tá tramando.

- Certamente.

*

Ao som do tuntzi-tuntzi, abaixo de luz piscando, em meio a pessoas se mexendo aleatoriamente enquanto pensam que dançam:

- Então eu disse para ela que queria ver ela de novo, e...

- Cara – corto a fala dele. – Pode parar.

- Hã?

- Chega desse papo sem nexo. Eu te chamei aqui para outra coisa.

- Ei, como assim? Não foi tu que me convidou. – quase ofendido.

- Foi. Tu e a tua mina...

- Ei!

- ...só estão aqui...

- Ei!

- ...porque eu quis isso. - Mantenho o meu monólogo ignorando completamente as perguntas dele. Mal olho para a cara dele. Faço movimentos com as mãos. Pareço um advogado italiano, mas calmo e controlado. Ele percebe que perdeu o controle sobre a conversa, e quer isso de volta. Mas não vai acontecer. Ele continua com as tentativas de intervenções.

- O quê?

- Tem uma coisa... – faço uma breve pausa.

- Ô!

- Tem uma coisa que eu queria falar contigo...

- Pera aí...

- ...que pode te interessar.

- Te liga, cara! – ele começa a se levantar.

- Vou direto ao assunto. – levanto a voz, me inclino um pouco para frente, e fixo comprometedoramente os olhos nele. – Tu quer ganhar uma grana?

- Como é?

- Isso mesmo que tu ouviu. - enfatizo a fala com um olhar sério.

- O que tu quer dizer com ‘ganhar uma grana?’. – ele senta, também se inclina, e fala num tom de voz mais baixo.

- Fazer algo, e receber pagamento em troca.

- Não sei, não. Teu papo tá muito estranho.

- É fácil, e não é ilegal, se é esse o problema. – abro um sorriso sarcástico.

- O que é?

- Quer a grana ou não? Primeiro tu me responde isso. Só depois de ter certeza que tu está disposto a ganhar dinheiro é que eu posso te dar a chance de ganhá-lo. Entende? – arqueio a sobrancelha, de leve.

Ele gesticula que sim. Vamos para um canto com menos gente e menos barulho. Explico rapidamente.

- É só isso? – ele pergunta

- É só isso.

- É só isso mesmo?

- É só isso mesmo.

- Beleza. Eu falo com ela.

- Ela vai aceitar, não? – ele deve ter notado que essa foi uma pergunta retórica.

- Porque eu acho que se você não tivesse certeza de que ela iria aceitar, jamais teria falado comigo? – sinceramente, eu não esperava uma resposta tão boa quando esta. Uma luz. Ele entendeu meu jogo perfeitamente. De certo já deve ter participado de outros.

- Exato.

*

Às vezes eu me pergunto como é grande a influência de uma pessoa sobre a outra. Fico admirado. Se qualquer desconhecido na rua tem o poder de fazer com que você se vista de forma a evitar que ele pense coisas sobre você que você não quer que ele pense... Então qual o poder que alguém que você já conhece tem sobre você? É maior? Bizarramente, ele pode ser menor. Pois quando você conhece alguém, não precisa impressioná-lo superficialmente por fora, uma vez que ele já sabe quem você é por dentro. Em contrapartida, se você mesmo que acidentalmente faz algo que deixa uma impressão ruim da sua pessoa em alguém que já conhece você, você se sente pior do que se deixasse uma má impressão da sua pessoa a um desconhecido. Interessante, não? Pessoas são complexas, complicadas, inexplicáveis... manipuláveis.

- Velho, tu vai me dar aqueles 500 reais é hoje. – digo.

- Hahaha! Quero ver. Hoje? Porque hoje?

- Na festa da Gabriela.

- Bah pior. Nem estava afim de ir. Tinha esquecido... – parece divagar.

- É bom que tu vá.

- Por quê?

- Para me ver ganhando a aposta.

- Mas como assim? O que a minha irmã tem a ver com isso?

- Foi convidada para a festa.

- Mesmo é? Como tu sabe?

- Tu sabe como é a Gabriela: ela chama todo mundo.

- Ah é... Então tá. Eu vou! – sorri ingenuamente como se tivesse a maior certeza do mundo de que será ele o vencedor da nossa aposta. Coitado.

*

Haveria jeito mais fácil? Olho para o meu amigo que me dará R$500,00 em um futuro próximo. Ele sorri. ‘Essa eu quero ver’, deve estar pensando. Estou caminhando em direção à irmã dele. ‘Essa eu quero ver’, deve estar pensando ele. Ela está de costas para mim, balançando o corpo bem de leve ao ritmo da música. Toco em seu ombro direito.

- Jéssica, oi. – digo. Ela se vira. Eu pisco um olho.

- Oi.

Pronto. Vocês já entenderam a minha jogada, não?

- Quer dançar?

- Claro.

- Seu namorado não vai se importar?

- Não.

- Tem certeza? É melhor perguntar. Deixe-me fazer isso. – então me volto para Carlos, que está sentado ali do lado – Carlos, se importaria? – mostro a ele que estou com sua namorada em meus braços, prestes a dançar. Pisco um olho. E sabe o que fazer. Levanta-se, faz um gesto para que Jéssica o siga. Eles se afastam um pouco. Conversam com muitas gesticulações, mas o suficiente para que não pareçam estarem brigando. Discretamente, olho o Vicente. Ele está de braços cruzados, quase rindo. Perfeito. Carlos e Jéssica voltam. Ele se senta, com a cara meio fechada; ela me puxa devagar para a pista de dança. Ela tem a visão sobre o Vicente. – Me faz um favor... – pergunto, já dançando – Me diz qual a expressão do seu irmão nesse momento.

- Ele está pensativo.

- Daqui 30 segundos...

Passam 30 segundos.

- Continua na mesma.

Na dança, a conduzo para mais perto do Vicente, e girando, trocamos de lado. Agora eu encaro ele. E minha mão que está na cintura dela desse devagar...

- Agora você me diz a cara dele. – ela fala.

- Os olhos estão se abrindo, espantados... Veja você.

Enquanto nos viramos, nos beijamos, bem de relance, só para o Vicente ver. Não estou vendo o rosto de nenhum dos dois, mas acredito que ele esteja com o queixo no chão, e ela esteja com o olhar mais malicioso que já fez na vida. Não devo estar tão longe da verdade.

- Então?

- Parece que viu um fantasma. – comenta rindo. Eu também ri.

- Vamos então?

- Vamos.

Enquanto caminhamos em direção ao Rafael, Carlos não nos vê, mas Vicente sim. Perguntamos se podemos ‘entrar na casa’. Eu já estou com a gravata na mão. Enquanto a Jéssica fala com a Gabriela, fofocas, eu só boto a gravata na maçaneta da porta que estava ao lado, e o Rafael entende. Quase não acredita, mas entende. ‘Então era isso, malandro’, deve pensar. Pega uma chave.

- É o da sacadinha para esse lado?

- Não. Por quê?

- Nós realmente gostaríamos desse da sacadinha, cara.

- Tá bem.

Pegamos a chave, subimos. Entramos no quarto, e acendemos a luz. Então apagamos a luz. Olho discretamente para fora, para o Vicente. Se antes ele parecia ter visto um fantasma, agora ele parecia um.

- Ele caiu.

Ligamos a luzes, e deitamos na cama. Apagamos as luzes.

*

- Então?

- O quê?

- Onde estão meus R$500,00?

- Ah...

- Meus R$500.

- Eu, eu... Não acredito ainda... Tu comeu minha irmã!

Minha resposta é um sorriso que diz ‘E tava bom’.

- Como é que tu conseguiu?

- Não interessa. Aposta é aposta.

- Vai te fuder. – ele me passa a grana. Eu tenho a arrogância de contar as notas na frente dele.

- Tudo certinho. Prazer fazer negócios com você. Tchau!

- Já vai?

- Já fui.

*

- Carlos, aqui. – entrego o envelope. – Tua parte.

- Hehehe. – ele olha o conteúdo. – Legal. E a parte da Jéssica?

- Quem disse que ela fez aquilo por dinheiro?